Monday, August 29, 2005

Incenso fosse música

Isso de querer ser
exatamente aquilo que a gente é
ainda vai nos levar além

Paulo Leminski

Sunday, August 14, 2005

+ um dia

Passei todo o dia ensaiando
pra ser um bom ator de minha vida
Andei plagiando frases ditas
me escondendo em sorrisos
temerosos de qualquer reencontro
Pensei em histórias com happy end
(minha professora de inglês ficaria feliz com isso)
e admito que até me diverti com minhas brincadeiras
Mas acontece que sempre que olho em volta
estou lá me vigiando
- Mais isso! Menos aquilo!
Detesto esta sua/minha mania de matematizar a vida
Talvez em revolta a isto
nunca aprendi a tabuada
E que venha a palmatória, minhas mãos estão abertas...

Thursday, August 11, 2005

Um minuto



O que é o futuro?
O futuro... ah, o futuro...
Passou... passado
Foi mal, não deu tempo.




[Salvador Dalí - Relógio Mole no Momento da sua Primeira Explosão - 1954]

Origami

Sou eu quem gosto de coisas perigosas
Loucos, cães de grande porte, folhas de papel
Folhas de papel?
Sim são perigosas, milhares de navalhas ao alcance dos tolos, dos românticos, das criancinhas
Das criancinhas...
Mas, na verdade, a maior crueldade das folhas de papel está no seu muído apelo:
- Me preencha...
- Me complete...
- Me rasure...
- Me amasse...
- Mas não me deixe assim!

Questões Íntimas


Onde se encontra o que era ontem? Onde buscar o momento exato em que algo pareceu ser quase normal? Onde colocar o vaso verde com plantas verdes? Aonde ir? Onde encontrar, enfim, o perfume que combine com a pele? Onde sentar, ao entrar em um escritório? Na cadeira à direita do anfitrião, ou à esquerda?

Onde encontrar aquela amiga de infância que entendia tudo o que se dizia, sem precisar explicar para ela que certos assombros da vida continuam acontecendo e merecem comentários, tanto quanto os da época em que éramos amigas de verdade?

Onde, a época? Onde o baú de madeira do meu pai que tinha algo interessante dentro? Onde o interessante? E o que era mesmo interessante, lá dentro?

Onde a real liberdade e as falsas falsidades? Onde o banheiro de ladrilhos brancos? Onde pegar quando alguém entrega uma bandeja com torta quente? Onde arranjar um lugar pra pensar que tudo que se pensa é normal? Onde o varal de roupas com cheiro de amaciante?

Onde o que era antes?

Onde o que era quando?

Onde o que era o que?

Onde a noção exata de que o limite se encontra aqui?
Agora e para sempre.
E rompo com meus limites. Liberto-me do medo de ser só, porque descobri que na realidade sempre fui, apesar de desejar o contrário.
Acabo de me sentar no núcleo de meu ser, ciente de que da mesma forma que cheguei aqui, vou sair.
E em nada me aborrece tal fato, simplesmente por não poder modifica-lo. Apenas o cumpro. Como tantos cumprem tanto. Ou muitos nada cumprem. E outros cumprem por tantos.
Eu apenas continuo, em marcha lenta, o caminho atazanado por algumas pedras em seu meio. Via desrespeitada.
Já nem vislumbro os dias crentes, quando sonhamos com o impossível e inviável sistema da felicidade. Éramos jovens demais para percebermos a ilusão que nascia em nossos corações e mentes.

E, me questiono, intimamente, se os tempos mudaram, ou mudamos nós.”

E me desnudo para o papel, testemunha única de minhas lembranças.
Ana Luísa Peluso

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinícius de Moraes

...


Afaste esses olhos dos meus
Não é só isso que eu quero de você
Que mal há em desejar demais?

Reorganizar o mundo é uma utopia
Nosso próprio peito já anda tão desordenado
Um tambor, ausente, presente...
Mas, são bonitos os teus sonhos
Teu jeito de ver quando fecha os olhos
Faz com que me sinta bem
As mil faces que me acompanham
Neste instante viram-se pra você
E quando à noite, quebro novamente o vidro
Posso voar, mais alto do que qualquer um
Porém, sempre volto pra casa
Encontro meu anjo caído
Meu mundo sombrio
Enquanto você continua tão...
Humano

Medo

Tenho medo de quem ri demais
Porque sinto um vazio sinistro entre seus dentes
Tenho medo daqueles que falam demais
Porque fazem o calar-se soar como uma ofensa
Tenho medo de quem olha fixo em meus olhos
Porque a essas pessoas sempre me revelo em excesso
Tenho medo de quem descobre que tenho medo
Porque, então, eu tenho raiva
E tenho medo de minha raiva

Só mais uma doce mentira

Tão longe e tão perto
Só depende da vontade
Alguém no meio de um deserto
Clama por caridade
Aonde estão os olhos
Pelos quais os meus procuram
Perco-me em colos
Que não são meus e sussurram
Vai embora, segue
Você pra mim não é metade
Engole o choro, consegue
Fugir da realidade
Esquece o medo caminha
Quem te completa é você mesma
Você nunca está sozinha
Um copo vazio sobre a mesa
Anda, levanta, acorda
Segue o rumo da alteridade
Pergunta, discute, discorda
Sente o peso da sinceridade
Jogou o pouco que tinha fora
E o que não possuía lhe foi tirado
Carrega no peito agora
Um sonho intenso inacabado
Mas, tanto faz é sempre assim
A dor que queima um dia passa
Tomada de surpresa pelo fim
No sorriso do querubim não vê mais graça
O que importa é o que ficou
Uma outra semente está plantada
Nascente escolha lhe transformou
Em nova pessoa mais paz na estrada
E tudo o que vier daqui pra frente
Será como prova de tua força
Se sorrir agora de modo diferente
Sabe que o muro não é tão alto, ao salto
Ao vôo que ousar possa

Cantiga da noite


Você vem junto com a noite
Chega tão manso, morno
Pouco a pouco vai me deixando inquieta
Faz com que eu duvide do sentido do que faço
Me envolvendo num laço
Macio, até comovente
Com seu jeito de olhar doce
Quente, dizendo que já é hora
De esquecer o que deu errado
E acreditar simplesmente
Você vem de uma forma louca
Repousa, saliva em minha boca
E eu que sempre fui selvagem
Desejo, de você, ser domesticada
Ronronando em seu peito
Durmo em suave delírio de completude
Você vem de um jeito bravio
Arrastando tudo como se fosse um rio
Com tua vontade que me faz viva
Carregando sonhos de menino
Nessas mãos de homem que tanto adoro
Você vem e me acolhe em teus braços
Faz de mim, em você, mais uma parte
E me ajuda a entender que de mim eu sou um todo
Você que me enfeitiçou de tal forma
Que nunca poderia explicar
Você vem me ensinar que um dia
Saberei falar sobre o verbo amar

Pequeno Imprevisto

Se houvesse como ser
Não seria como é
Se o sol tardasse a amanhecer
Seria mais uma noite qualquer
Se me embriagasse de frio
Seria o calor um tanto vazio
Se de esperança enchesse o peito
Sempre haveria algum defeito
Alguém me explique o que é perfeito
O tempo vai passar, não há nada de novo ou importante
Nada que me orgulhe contar
Se o mundo se enchesse de flores
Quem prestaria atenção nas cores
Se nascêssemos completos
Quem entenderia a poesia dos desertos
Se houvesse um sentido verdadeiro
Quem descobriria primeiro
Se há alguém a nos guiar
Até onde, aonde vai nos levar
Se a maldade fosse uma serpente
Será que alguém lhe arrancaria o dente
Será que somos os verdadeiros atores nessa trama
Ou estamos apenas jogados onde a loucura se derrama

Wednesday, August 10, 2005

Preamar

[Desenho do meu grande amigo João Paulo Maia]
Preamar
Caminho nas ondas contrárias ao vendaval
Maresia areja minh’alma
Alvura de relâmpagos prenunciam
O verdadeiro refúgio
Ardor soluçante de volúpia veemente
Vencendo o torpor de cada instante
luz derradeira a tragar o infinito
O pousar da criança inconstante
Quebrar a pedra, tecer a rede
Esperar pela novidade
Caminhar suave, pluma incandescente
Temer o medo, inventar coragem
Subir montanhas, estar desperto
Coberto pelo rubro manto
Aquecer o corpo renegar afeto
Decerto não sabes onde ando...